A região inguinal é o sítio de diversas patologias da criança que podem desencadear processos de alta morbidade e até mesmo um índice de mortalidade expressiva, quando não são diagnosticadas e tratadas adequadamente.
Esta região é palco de grandes transformações no período fetal, proporcionando assim, maior probabilidade de ocorrência de erros do desenvolvimento embriológico que resultam em patologias decorrentes de alterações anatômicas. A incidência de acidentes embriológicas deste sítio, só perde em incidência para as alterações do sistema geniturinário e cardiovascular.
Todas estas patologias estão relacionadas à migração embriológica do testículo no feto masculino e na fixação do ligamento redondo do útero no feto feminino e incluem a hérnia inguinal, as hidroceles o cisto de cordão, o cisto de Nuck e as criptorquias.
EMBRIOLOGIA
- Por volta do terceiro mês de vida fetal, durante o aparecimento da cavidade celômica abdominal, já se identifica uma evaginação deste tecido peritoneal que se projeta cranialmente em direção a região inguinal, formando o conduto peritoneo-vaginal.
- A migração do testículo no feto masculino ocorre no sétimo mês de vida fetal e este desloca-se desde o pólo inferior do rim, penetrando no conduto peritoneovaginal para transpor a musculatura da parede abdominal até atingir a bolsa escrotal. Este deslocamento faz-se por estimulação de hormônios androgênicos.
- No feto feminino, o ligamento redondo é a estrutura que se utiliza da evaginação peritoneal para chegar junto aos grandes lábios vaginais, onde se fixa.
- Nos dois casos os desmorfirmos do canal inguinal estão relacionados a não absorção do conduto peritoneovaginal que deve acontecer por todo o trajeto de descida do testículo, com exceção da porção que envolve o testículo (túnica vaginal).
ETIOLOGIA
O desmorfismo inguinal, relacionado a reabsorção incompleta do conduto peritônio vaginal se apresentará de formas variadas e sempre relacionadas com a persistência completa ou segmentar do conduto. Assim sendo, o normal é que tenhamos todo o conduto absorvido, não havendo comunicação do abdômen com a região inguinal(Fig.1). O não fechamento do conduto acarretará nas seguintes patologias:
- Hérnia inguinal indireta(Fig.2) se formará na vigência de uma persistência do conduto desde o abdômen até a região inguinal com passagem de conteúdo visceral.
- Hérnia inguino escrotal(Fig.3) é quando a protrusão de vísceras se estende até a bolsa escrotal.
- Hidrocele (Fig.4) se caracteriza por uma comunicação estreita por onde o liquido peritoneal ocupa o conduto até o envoltório vaginal do testículo. O calibre estreito do conduto não é suficiente para permitir a projeção de vísceras.
- O cisto de cordão no menino e o cisto de Nuck na menina ocorrem quando há o fechamento do segmento proximal e distal do conduto preservando uma formação sacular repleta de liquido peritoneal.
INCIDÊNCIA
- A prevalência geral de hérnia inguinal varia de 0,8 a 4,4%, e história familiar será relatada em 11% dos casos.
- Pode ser mais frequente em meninos em até 9 vezes.
- Quanto a lateralidade o lado direito é o afetado em 60% dos casos, lado esquerdo em 25% e bilateralmente em 15%.
- Acarreta os prematuros com menos de 1000g em um percentual de 5 a 25% dependendo da idade gestacional.
- Em 15% das crianças portadoras de hérnia inguinal, ocorrerá um episódio de encarceramento, sendo 70% destas complicações no primeiro ano de vida.
- Má formação genital, luxação congênita do quadril e fibrose cística são associações patológicas frequentes.
DIAGNÓSTICO
- O diagnóstico é essencialmente clínico e consiste na palpação de conteúdo abdominal projetado para a região inguinal ou escrotal e do espessamento do cordão espermático.
- Como o abaulamento(Fig.5) pode apresentar-se de forma insidiosa, preconiza-se a utilização de manobras que aumentem a pressão intra abdominal (paciente ereto, tosse, choro e sopro), quando mais facilmente será detectada a herniação.
- Na maioria das vezes a suspeição da mãe que viu um abaulamento na região é o fator desencadeante para uma investigação que pode exigir exames físicos seriados.
- A palpação inguinal de um espessamento do cordão espermático (Sinal da Seda de Gross) causado pela persistência do conduto é de fácil identificação, desde que o pediatra atente para o reconhecimento da consistência desta estrutura em pacientes não portadores de hérnia.
- O relato materno é de suma importância e deve ser valorizado, pois em quase a totalidade dos casos ele resulta em diagnostico positivo de hérnia inguinal, mesmo após meses do relato.
- A hidrocele(Fig.6e7) e o cisto de cordão/Nuck se caracterizam por apresentarem como uma coleção cística de maior ou menor tensão. Algumas esvaziam a compressão, demonstrando sua comunicabilidade. A trans iluminação é esclarecedora e demonstra claramente o conteúdo liquido e o testículo.
TRATAMENTO
Eletivo
- O tratamento eletivo da hérnia inguinal é sempre cirúrgico e é acompanhado de uma baixa taxa de morbidade e mortalidade. A indicação cirúrgica é feita quando do diagnostico, já que o risco de estrangulamento é imprevisível, podendo ocorrer horas ou anos após o diagnóstico ou até mesmo nunca ocorrer.
- É feita sob anestesia geral inalatória associada a bloqueio loco regional, e o paciente retorna para a sua residência algumas horas depois do procedimento. O confronto do risco anestésico (em presença de comorbidades) com o risco de encarceramento deve pautar a indicação cirúrgica.
- Os recém-nascidos de baixo peso com hérnia inguinal redutível, internados em unidade intensiva, devem aguardar até que o seu peso chegue pelo menos aos dois quilogramas, para só então serem operados.
- Ainda é controversa a exploração cirúrgica contra lateral em crianças com hérnia inguinal. Alguns autores ainda aconselham a exploração contralateral em crianças de ambos os sexos abaixo de um ano, em todas as meninas em qualquer idade, em meninos abaixo de dois anos que tenham hérnia clínica a esquerda. Outros autores não indicam a exploração contralateral, baseados em trabalhos que demonstram uma taxa baixa de bilateralidade.
- A hidrocele só deve ser corrigida após o décimo segundo mês de vida, pois poderá ocorrer neste período a absorção do liquido peritoneal retido. Em casos de hidrocele comunicante o procedimento cirúrgico pode ser antecipado.
Urgente
- O encarceramento herniário consiste no aprisionamento da víscera projetada no canal inguinal com consequente isquemia, necrose e perfuração. Nos meninos o órgão afetado quase sempre é o intestino e nas meninas a presença do ovário retido no canal inguinal não é incomum.
- A presença de tumoração inguinal irredutível apresentando sinais flogísticos ou não, que é acompanhada de choro persistente, distensão abdominal, recusa alimentar, vômitos, e parada de eliminação de gases e fezes é indicativo de encarceramento herniário e deve ser assistido por um cirurgião pediatra.
- A melhor conduta frente ao encarceramento é tentar reduzir o conteúdo herniário e corrigir eletivamente a hérnia, ainda durante esta internação com um intervalo de tempo não inferior a 48 horas do evento, quando os tecidos apresentarão condições cirúrgicas mais satisfatórias.
- A redução incruenta é factível na grande maioria dos casos e pode ser feita sob sedação leve utilizando cetamina 1 a 2 mg/kg/dose IV associado a midazolam 0,1 mg/kg/dose IV.
- O sucesso da redução da hérnia está relacionado com a técnica utilizada, que consiste na fixação do orifício inguinal interno com os dedos indicador e polegar enquanto o conteúdo herniário é comprimido para cima com uma pressão constante. Quando se observa a passagem do gás de dentro da víscera, ou mesmo um pequeno segmento desta retorna para a cavidade abdominal aumenta-se a certeza que o procedimento será realizado completamente.
- Alguns autores associam o tempo de encarceramento e a reação inflamatória local com o risco de redução de uma víscera necrosada para a cavidade abdominal, na nossa experiência, constatamos que uma alça intestinal com sofrimento vascular irreversível dificilmente poderá ser reduzida de volta para o abdômen.
- A cirurgia é procedida mediante o insucesso das manobras incruenta e objetiva a redução do conteúdo visceral viável e correção da hérnia. Quando as vísceras apresentam sofrimento vascular refratário a liberação da compressão e aplicação de compressas mornas, optamos sempre por fazer um acesso abdominal que proporciona maior comodidade e segurança para as ressecções necessárias.
- O testículo pode sofrer isquemia por compressão de seus vasos no trajeto inguinal e devem ser inspecionados durante a cirurgia.
COMPLICAÇÕES
- São raras e incidem quase sempre nos procedimentos de urgência. Compreendem as reincidivas, as supurações, as atrofias testiculares, as criptorquias pós-operatórias e as hidroceles residuais que são absorvidas espontaneamente.
DICAS PRÁTICAS
- A ultrassonografia poderá auxiliar no diagnóstico de pacientes que apesar de apresentar espessamento do cordão não demonstraram protrusão visceral durante o exame.
- Em nossa opinião a exploração cirúrgica contra lateral deve ser feita quando há dúvida no exame físico, nos pacientes com patologias que provoquem aumento da pressão intra abdominal, mediante morbidades que aumentem o risco anestésico e em prematuros.
- Todos os prematuros ou portadores de patologias cardio respiratórias devem ser monitorados no pós-operatório por 24h em unidade intensiva, pois apresentam índice significativo de apneia.
- As hidroceles comunicantes podem se apresentar esvaziadas pela manhã e turgidas à noite. Não é incomum o aparecimento súbito de hidrocele mediante crise de tosse, infecção respiratória e febre.
- Nas hérnias encarceradas uma radiografia de abdômen pode demonstrar um padrão obstrutivo e até mesmo imagem aerada em região inguinal.
- Os lactentes que apresentam um episódio de encarceramento, normalmente repetem este evento sequencialmente, até a cirurgia corretiva.
